10 de out. de 2010

Estação no Velho Abrigo

Dessa vez.
De outras tantas vezes.
Ao abrigo nos dirigíamos, digo isso para relembrar os espasmos das noites indóceis de Lajedão, sentávamos e sentíamos o cheiro nauseabundo do vômito amanhecido que tingia as paredes verdes descascando sob a mancha marca dos sapatos e dedos dos pés semimortos. Ou a urina podre incandescente que nos tirava o branco dos olhos.
O assunto era sempre o mesmo. O universo e suas perversidades, aquela “bunda” tenra, o melhor cigarro, as tosses indígenas, a poesia de qualquer poeta bêbado. Mas sempre o mesmo assunto era o assunto.
Um bom assunto sempre.
Quando conseguia levantar o rosto, via uma mão me presenteado com um vigoroso e ardente Dreher lavado em Coca – Cola vagabunda, que era o motivo para se perdurar os assuntos. Ao passo que de cabeça erguida eu percebia a névoa acinzentada sob os pingos de chuva rala e fria que nascia entre os postes e tornava a lâmpada num círculo cadente amarelão de fogo que não aquecia. Só algumas almas intolerantes que trafegavam em volta do lugar, sempre nos causando aflição e temor. Nessa hora me lembrava de minha casa e seu silêncio.
Quando tempos em tempos, o vento tomava – nos a atenção. As mãos nos bolsos vazios buscando uma proteção inexistente.
Mais almas passavam com o vento.
A hora como de costume, passava fidelíssima ao contraponto das noites Lajedaenses onde a currutela dos tédios copiosos se multiplicava em vitrines de sonos insaciáveis, de drogados insaciáveis, de meninas descalças e insaciáveis, de velhos insaciáveis embaralhando sua sorte em mesas redondas de outros conhaques, de carros insaciáveis que acordam pelas madrugadas, lentamente. As horas por ali passavam lentamente. O conhaque misturado já parecia inapreciável.
Mas não havia outra solução.
Estávamos presos nessa noite como a noite de ontem e a noite de amanhã. Tentar disfarçar quando a carruagem de cores piscando passava pela rua, sob o olhar indiferente de outros seres tão infelizes quanto nós.
E pensar que durante o dia, o abrigo parecia menos agradável.
Assim é sua Lajedão, tão curral quanto Roma em chamas, de onde não se pode escapar. As noites de chuva fina e fria carregam a melancolia atroz das ausências que sentíamos. Qualquer outra noite traria um conforto diferente e a mesma melancolia. Não é preciso culpar a chuva fina e fria dessa noite. Basta enxergar como a fumaça de meu cigarro parece ter dúvidas e começa a errar o seu caminho. E ninguém bocejava ou reclamava. Éramos quatro incontentes de vidas diferentes. Cada uma sentia a sua maneira, mas não deixava a transparecer a dor mancomunada de seu “eu”, só outro gole no conhaque nos entregava o sentimento amargo da podridão pulsante de nossos seres.
Às vezes éramos interrompidos por andarilhos de ferro querendo se guiar ou permanecer em sua rota noturna. Pensavam embasbacados, porque esses seres estão aqui? Ou as garotas em trajes ultrajantes e mínimos pedindo cigarro e recebendo um pedido em troca.
Ah! Como fediam! Seus cabelos entre molhados com os pingos da mesma chuva que nos assustava, algumas “putarias” soltam à boca. As duas olhavam para o longe e tagarelavam sobre ele e ele, insistiam no cigarro e balbuciavam uma desculpa para o não. Um tapa na bunda, um riso qualquer.
Àquela hora tudo fazia algum sentido.
No dia seguinte outra noite como essa noite. De novo só outras roupas, novas marcas aos olhos e a bebida uma pouco mais gelada.
As noites daqui cheiravam a putas imundas.
Era o gosto podre da cidade de brincadeira, onde tudo parece desconhecido e novo.
Mas o novo nunca vinha.
Quando veio não teve graça.
A dor não tem graça.
Ver a dor no semblante dos outros não tem graça.
Quantos já se foram.
A maioria se esqueceu de nós.
Quando se lembram culpam – na, ó pobre Lajedão, causa e solução de amores e dissabores.
Quando o tempo passa e a saudade nem mais existe ou pode ser lembrava, aí nos lembramos do abrigo, que nos abrigava de nós mesmo e de nossas vontades aprisionadas em quartos pequenos e nos olhos que nos viam. Quantas vezes escutou quieto os lamentos de fracassados, que chegam em pé e saem deixando uma pouco de si entre paralelepípedos sujos, dividindo sua dor com aqueles que não merecem – na. Dotados da maldade involuntária, infelizes que compraram, quase de graça, sua própria infelicidade.
Outros abandonados.
Estes nos mostravam o quanto poderíamos ser felizes.
Pequenos cacos escarrados contra a parede, falavam de seu abandono, mostrando fotografias antigas onde o reflexo era novo. Mostrando a si mesmo que além de ensinar a vida pode torturar quem não a respeita.
Outros vinham de longe e pousavam no abrigo para compartilhar tristezas e pedir cigarros.
Rir de suas mazelas.
Apagar pontas de cigarro no próprio peito.
Serem o motivo do riso alheio.
O pavor por não ter com quem contar enquanto atacado.
Acuado. Gritando a Deus uma piedade pelo amor de Deus!
Tão logo essa névoa passasse, dormir não pela tranqüilidade, mas pelo sono perdido.
Desmaiar entre os lençóis.
Acordar temendo ter morrido.
O pesadelo esteve aqui ao lado.
Bater a cabeça na parede e acordar com o braço formigando.
Com vergonha de chorar ao lado de si mesmo.
No abrigo não é assim. Lá o medo é o melhor amigo.
Certas vezes em alguns instantes raros e caros o silêncio era absoluto. Sabíamos o que dizer e o que queríamos dizer. Mas não dizíamos.
O momento era pra se contemplado.
Pensava eu, em quantos sonos ela estaria. Se eu estaria com ela em seus sonos.
Disso eu não saberia. Nunca soube e hoje não tenho como saber.
Quando bocejo eu lacrimejo.
Sou tão vulgar num tropeço que em minhas palavras envergonho enquanto bocejo.
A noite já pode ser tocada.
E é hora de ir embora.
Acorde e escute a música.
Era um cartaz religioso.
E religiosos íamos embora com a certeza de uma missão cumprida.
Ver na dor dos outros desconhecidos o quanto nossa dor é desconhecida.
Já ouvi falarem sobre a solidão e sobre estar só.
No final nada é diferente de nada.
Mas o nada é alguma coisa.
Como uma garota que pretende amores. E aos amores faz as mais questionáveis exigências.
Um vestibular para o coração.
Mas eles são reprovados, e nós estamos presos ao vício disforme de estar num abriga que nem da chuva fina e fria consegue nos abrigar.
Os medos são muitos.
E as idades parecem não existir.
Mas os medos existem.
Amanhã à noite vou mentir para minha mãe.
Novamente vou mentir pra ela.
Aos paradoxos teimosos, houve um amor entre a podridão exorbitante e real do abrigo.
E para ela eu também menti.


Lajedão - 14/08/2003

1 Acenderam os faróis :

Luciano Fraga disse...

Caro Mister, a la Ginsberg em suas noites e vagões...pode até ter mentido, mas arrodeado de nostalgias e verdades insolentes, valioso texto, parabéns pela escrita, abraço.